por Simone Furguim Guimarães
retirado do site www.cebi.org.br
Este texto reflete sobre os arquétipos[2] bíblicos entre Eva e Maria, pois entende que um dos fatores que gera a violência doméstica contra a mulher é a violência simbólica, muitas vezes originada por leitura e discurso sexistas.
Pode-se dizer que a influência implícita dos arquétipos é percebida nos comportamentos machistas tanto de homens quanto de mulheres: quando o homem não aceita a independência financeira da mulher, ou quando a mulher acredita que "seu papel" é ficar em casa cuidando dos filhos e do marido etc.
Muraro afirma: "Tudo o que percebemos, desde que nascemos até o primeiro ano de idade, tende a ser naturalizado, porque é o único modelo que vivemos. E ele não está sequer no inconsciente, não há terapia que chegue lá. Está aqui no cérebro, no hipotálamo. Quando aprendemos a relação de dominação, ela é naturalizada e a relação de violência também"[3].
Sabe-se que símbolos tidos como sagrados legitimam costumes, comportamentos e valores sociais. No catecismo, a criança aprende que há dois modelos de mulher: Eva e Maria. Haidi Jarschel faz uma descrição desses arquétipos: "Maria é apresentada como mulher assexuada na vestimenta, no olhar, na postura corporal que não apresenta erotismo, não apresenta vida pulsando. Os ícones dela a apresentam como uma mulher totalmente de cabeça baixa, a roupa dela cobre todo o corpo. Você não vê corpo, você só vê rosto. E neste rosto estampado você vê uma mulher que não está vibrando com a pulsação da vida. Esta é a Maria que é apresentada pela religião cristã patriarcal. E a Eva é sedutora, desobediente, transgride a norma do Deus patriarcal. É Eva quem toma iniciativa (isto é compreendido através do mito da conversa sobre a maçã). Este modelo é penalizado, é associado com o mal. Todo discurso religioso cristão associa Eva ao pecado"[4].
A figura de Eva é figura que se rebela contra esta inferiorização das mulheres. A figura de Maria é a figura daquela que se submete, daquela que obedece. Para os homens, a questão do modelo é bem mais simples do que para as mulheres, pois a catequese ensina que Deus cria os homens à sua imagem. Apesar de se reconhecerem como pecadores, conforta-os saber que foram criados à imagem e semelhança de Deus. Enquanto que, para as mulheres, há dois modelos conflitantes, Eva e Maria. E mais. Para os homens, há dois modelos de homem que podem ser complementares: Deus criador e provedor, e Jesus salvador, figuras masculinas ligadas à criação e à salvação. Diferentemente, os dois modelos antagônicos de mulher fazem com que as mulheres vivam sempre num conflito interior. A mulher sente culpa por ter prazer, por ser tocada e por afastar-se do modelo de Maria. Para chegar ao modelo de ser mãe, a mulher precisa negar seu ser mulher. Para se tornar Maria, deve negar ser Eva[5].
A religião patriarcal foi instaurada com o monoteísmo. A mulher deixou de ser a portadora do sagrado e Deus passou a ser representado somente na figura masculina, cujas alianças são feitas somente com varões. A religião judaica promoveu um rito exclusivo para os homens, que é a circuncisão: um rito de aliança com um Deus que é representado pelo sexo masculino, excluindo, dessa forma, as mulheres. Esta ideologia perpetuou-se graças à interpretação anti-feminina das narrativas da criação.
O relato da criação de Eva (Gn 1,18-25) foi interpretado de forma negativa, como sendo a causa da queda (Gn 3,1-19). Dessa forma, produziu no imaginário coletivo a naturalização do sexismo. Se Adão foi criado primeiro e Eva depois, de sua costela, então Adão é superior a Eva. Esta deve obediência a ele. Sobretudo, porque Eva "deu do fruto proibido a Adão" (Gn 3,6-7). Esta interpretação do relato da queda é ainda mais anti-feminina quando entende a mulher como a responsável pelo pecado, uma vez que primeiro ela foi seduzida pela serpente e depois acabou seduzindo Adão. Teologicamente, a justificativa de sua submissão ao homem vem do castigo divino: "estarás sob o poder do teu marido e ele te dominará" (Gn 3,16). Nesta interpretação fundamentalista, androcêntrica e patriarcal, Eva passou a ser a grande sedutora e a fonte do mal. Enquanto as características masculinas são consideradas fonte de criação, as femininas são fonte de perdição, devidas ao caráter libidinal das mulheres.
Esse "castigo" será sustentado no discurso de algumas igrejas da tradição pós-paulina nos primeiros séculos, no qual se ordena que a mulher esteja em silêncio: não tolero que a mulher ensine na igreja (cf. 1Tm 2,11) e se quiser aprender algo, pergunte em casa a seu marido, porque não é decoroso para a mulher falar na igreja (cf. 1Cor 14,34-35). Ou ainda no ditado: "dom de Deus é a mulher calada, e não tem preço a discreta".
Esse imaginário foi e ainda é reproduzido por igrejas hegemonicamente patriarcais, perpetuando uma interpretação e hermenêutica androcêntrica nos discursos, nos cultos, nos sermões, na catequese, etc. Dessa forma, alimentam a simbologia de Deus como Pai, bem como a divisão hierárquica e funcional na relação conjugal, sendo o homem a cabeça assim como Cristo, e a mulher o corpo assim como a Igreja. Com isso, legitimou-se a estrutura patriarcal na família e em todas as instituições, pois a cultura ocidental foi fortemente influenciada pelo cristianismo hegemônico. Consequência disso foi a naturalização da violência simbólica, que é uma das violências mais profundas contra as mulheres.
Muraro argumenta também que a interpretação do capítulo 2 de Gênesis - inferiorizando a mulher por ser considerada pecadora (Eva) - e o Malleus Maleficarum -documento escrito por inquisidores da Idade Média - são os textos mais importantes sobre a mulher para o patriarcado, porque "é neles que a sexualidade, e, portanto, a mulher, é satanizada. Por causa deles, essa satanização ‘pegou' tão fundo na cultura ocidental".[6] Ela diz ainda: "O Malleus Maleficarum foi uma continuação popular do Segundo Capítulo do livro de Gênesis e é o testemunho mais importante do patriarcado. Foi o livro dos inquisidores durante três séculos (do século XVI ao século XVIII). E neste livro fica testemunhada de maneira inequívoca a satanização da sexualidade, base da misoginia[7] da cultura ocidental. Uma satanização que tem sua primeira expressão no capítulo II do Gênesis"[8].
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Por isso, a misoginia tomou formas extremas entre o século XV e XVI, pois as mulheres eram queimadas vivas nas fogueiras. Muraro nos informa que no período da Idade Média, aproximadamente mais de cem mil mulheres foram queimadas vivas por serem consideradas bruxas.
Acreditamos que o imaginário bíblico e religioso anti-feminino foi um propulsor dos discursos sexistas, nos quais se justificam as desigualdades de papéis sociais entre homens e mulheres. Isto se mantém até hoje e se reflete nos comportamentos agressivos da sociedade, sobretudo no ambiente doméstico, em que, segundo pesquisa feita pelo Ibope no ano de 2006[10], 51% dos entrevistados/as declararam conhecer ao menos uma mulher que é ou foi agredida por seu companheiro.
Diante do exposto, através das pastorais e catequeses, bem como das instituições que promovem trabalhos de conscientização sobre a igualdade nas relações de gênero, o desafio das igrejas é, de um lado, desconstruir as leituras sexistas, os modelos patriarcais e, de outro, reler o texto e o contexto atual na linha da libertação destas amarras que o texto provoca. Elisabete S. Fiorenza vai definir como sendo uma "hermenêutica de transformação e de ação pela mudança". Diz-se ação pela mudança porque esta hermenêutica deve ser realizada em espaços de estudos, sejam bíblicos e/ou religiosos, como lugar de transformação social, política e religiosa.
BIBLIOGRAFIA:
FIORENZA, Elisabeth S. Caminhos da Sabedoria: uma introdução à Interpretação Bíblica Feminista. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2009.
GUIMARÃES, Simone Furquim. Efésios 5.21-33 como modelo de discurso de gênero.Trabalho de Conclusão (Mestrado em Teologia) - Programa de Pós-Graduação em Teologia, Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, 2011.
MURARO, Rose M. Textos da Fogueira. Brasília: Letraviva, 2000.
ROSADO NUNES, Maria José F. (Coord.). Religião e Violência contra a mulher. São Paulo: CDD, 2003. 1 DVD (60 min.), color.
[1] Este texto é parte e adaptação de minha dissertação de mestrado. In: GUIMARÃES, Simone Furquim. Efésios 5.21-33 como modelo de discurso de gênero.Trabalho de Conclusão (Mestrado em Teologia) - Programa de Pós-Graduação em Teologia, Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, 2011.
[2] Descrito pelo psicólogo Carl Gustav Jung como um conjunto de imagens psíquicas presentes no inconsciente coletivo que seria a parte mais profunda do inconsciente humano. Os arquétipos são o conjunto de informações inconscientes que motivam o ser humano a acreditar ou dar crédito a determinados tipos de comportamento. In:www.dicionarioinformal.com.br/arquetipo/
[3] MURARO, 2000, p. 36.
[4] Pastora luterana, mestre em Ciências da Religião, entrevistada no vídeo Religião e Violência contra a mulher, 2003.
[5] Narradora do vídeo Religião e Violência contra a mulher, 2003.
[6] MURARO, 2000, p. 78.
[7] FIORENZA, 2009, p. 229-238. Do grego miso (ódio) e gyne (mulher). É um movimento de aversão ao que é ligado ao feminino.
[8] MURARO, 2000, p. 70.
[9] MURARO, 2000, p. 72.
[10] BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Marcas a Ferro. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005. Disponível em: . Acesso em: 23 maio 2011.
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